*Documento Técnico que subsidiou a coleta de assinaturas para o Manifesto e Abaixo Assinado “URBANISTAS EM DEFESA DE BRASÍLIA”.
1. A LEGISLAÇÃO URBANÍSTICA E DE TOMBAMENTO
Os parâmetros de uso e ocupação dos Setores de Grandes Áreas Sul e Norte, quadras 600 e 900, são estabelecidos pela NGB 01/86[1]. Nessa normativa o uso permitido é institucional, incluindo atividades como órgãos da administração pública direta e indireta, instituições beneficentes, educacionais, culturais, religiosas e de saúde. A altura máxima permitida é de 9,50 metros, salvo para alguns elementos arquitetônicos de templos para os quais a altura permitida é de 12 metros.
Esses parâmetros de ocupação do SGAN estão protegidos pelos dispostos no artigo 12 do Decreto 10.829/87 e artigo 11 da Portaria 314/92 – IPHAN que tratam da proteção do Conjunto Urbano de Brasília e determinam “Com o objetivo de assegurar a permanência, no tempo, da presença urbana conjunta, das quatro escalas (…) ficam mantidos os critérios de ocupação aplicados pela administração nesta data”.
Confirmando o entendimento de que o gabarito do SGAN definido pela NGB 01/86 é protegido integralmente pela legislação de tombamento, Lucio Costa expressamente recomenda em seu documento Brasília Revisitada (1987), no item Complementação e Preservação, “Manter os gabaritos vigentes nos dois eixos e em seu entorno direto (até os Setores de Grandes Áreas, inclusive (…) Isto é fundamental.”
É importante lembrar que o documento “Brasília Revisitada” é Anexo do Decreto 10.829/87 e também é citado no art. 9º, § 3º da Portaria 314/92 Iphan. Dessa forma possui força de um dispositivo legal e não pode ser entendido somente como um mero documento técnico com orientações e considerações do criador da cidade.
Os parâmetros de ocupação previstos para o SGAS e SGAN são de edificações baixas, com taxa de ocupação de até 40% da superfície do lote e com baixa densidade. Dessa forma, a Quadra 901 do SGAN é parte integrante da Escala Bucólica, conceito introduzido pela legislação de proteção para designar não somente as áreas verdes da cidade, mas também as áreas de ocupação esparsa e de baixa densidade, como também o são os Setores de Clubes Sul e Norte.
2. O PDOT (LEI COMPLEMENTAR 803/2009)
O GDF e a Terracap têm utilizado os artigos 112 e 113 do Plano Diretor de Ordenamento Territorial do DF (PDOT)[2] como amparo legal ao projeto hoteleiro da SGAN 901. Esses artigos prevêem “ações de revitalização” dos setores centrais do Plano Piloto, dentre os quais se inclui o Setor Hoteleiro Norte (SHN). Curiosamente, a Quadra 901 do SGAN surge no § 2º do artigo 113, onde é considerada, sem justificativa, como fazendo parte da “revitalização do Setor Hoteleiro Norte”.
São equivocados os entendimentos de que esse parágrafo do PDOT anulou a NGB 01/86 e igualou os parâmetros de ocupação da SGAN 901 aos do SHN. Isso equivaleria afirmar que o PDOT 2009 alterou dispositivos do Decreto Distrital 10.829/87 e Portaria 314/92 – Iphan.
Um dispositivo do PDOT não pode alterar parâmetros de ocupação protegidos por legislação federal como é a Portaria 314/92 Iphan, tampouco foi esse o teor do §2º do artigo 113. O PDOT define somente que a revitalização do SHN abrangerá a Quadra 901 do SGAN, ou seja, que as ações de revitalização incluirão essa quadra, no sentido cronológico e não de concepção ou gabarito.
A “estratégia de revitalização” é explicada no artigo 110, onde resta claro que tem como objetivo prioritário a preservação do patrimônio cultural, o combate às causas da degradação do patrimônio ambiental urbano, e o respeito às disposições da legislação de tombamento. Destaca-se a afirmativa do artigo 110 de que “a dinâmica urbana deve ser adequada à estrutura físico espacial do objeto de preservação”, e não o contrário, como pretende o projeto hoteleiro para a SGAN 901.
O artigo 112 do PDOT 2009 esclarece objetivamente quais são as ações envolvidas na estratégia de revitalização. Aqui nota-se que as ações tratam de melhorias físicas de edifícios, circulações, calçamentos, vias, praças, interconexões entres os setores centrais, incentivos fiscais, intervenções em espaços públicos e privados para recuperação de áreas, entre outros. Não há a previsão de criação de unidades imobiliárias, alterações drásticas de usos ou gabaritos, tampouco previsão para um projeto hoteleiro na SGAN 901.
Destaca-se que o estudo elaborado pela própria Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação (SEDHAB) em 2009 para cumprir as diretrizes dos artigos 112 e 113 do PDOT e intitulado “Programa de Revitalização dos Setores Centrais de Brasília” não faz qualquer menção à criação de novos lotes na área central, tampouco à alteração de usos e gabarito na SGAN 901.
Também é importante destacar que o prognóstico preliminar do Plano de Preservação do Conjunto Urbano de Brasília (PPCUB) reafirma as características atuais da SGAN 901 ao descrever as quadras 900 norte e sul do Plano Piloto (Área de Preservação 6 – AP6) como “área limite entre o tecido principal da cidade e parques urbanos e áreas de lazer, situados a oeste. Caracteriza-se, predominantemente, por grandes lotes com baixa densidade de ocupação e usos institucionais. Por se constituir no limite entre as Asas e os parques urbanos, trata-se de área sensível, devendo manter a baixa densidade de ocupação, altura reduzida e intensa arborização”.
Assim, a inclusão da Quadra 901 do SGAN na estratégia de revitalização de áreas centrais do PDOT 2009 não pode ser utilizada para justificar a alteração de usos, ampliação do gabarito e adensamento dessa região à revelia da legislação de tombamento e preservação. Eventual projeto de parcelamento nessa área obrigatoriamente se submete aos preceitos consolidados de preservação do Plano Piloto de Brasília: Decreto 10.829/87, Portaria 314/92 Iphan e Brasília Revisitada (1987), os quais em leitura conjunta confirmam a validade e permanência da NGB 01/86.
- 3. LEITOS DE HOSPEDAGEM EM BRASÍLIA
Em que pese a falta de transparência acerca do suposto déficit de leitos de hospedagem em Brasília, segundo informações da mídia a FIFA exige que uma cidade sede ofereça 1/3 da capacidade do seu estádio em número de leitos de hospedagem temporária. No caso de Brasília isso resultaria em 23 mil leitos para o Estádio Nacional, o qual terá capacidade para 70 mil pessoas e, em matéria publicada na Revista Veja[3] informa-se que Brasília já possui 25.0000 leitos. Entretanto o GDF trabalha com uma necessidade de 35 mil leitos de hospedagem, o que significa na realidade 50% da capacidade do futuro Estádio.
Reforçando a inconsistência dos dados relativos ao suposto déficit de leitos, a Associação Brasileira da Indústria Hoteleira no DF (ABIH/DF), o Sindicato de Hotéis, Restaurantes Bares e similares de Brasília (SINDHOBAR) e o Brasília e Região Conventions & Visitor Bureau, entidade legítimas de representação do ramo hoteleiro redigiram documento conjunto onde afirmam que não há necessidade de expansão da rede de hotelaria de Brasília e que a avaliação que a FIFA realizou sobre a cidade não fez exigências quanto à expansão da rede existente.
Percebe-se que não há comprovação técnica quanto à existência de um déficit de 10 mil leitos de hospedagem em Brasília para a Copa do Mundo de 2014. Todavia, dúvidas dessa natureza são inadmissíveis em um projeto com tamanho impacto na área tombada. Nesse aspecto é importante analisar o contexto do mercado hoteleiro da capital.
O Setor Hoteleiro Sul (SHS) possui 31 lotes destinados a hotéis, sendo dois de grandes dimensões[4] e seis desocupados. No Setor Hoteleiro Norte há 32 lotes destinados a hotéis, sendo dois de grandes dimensões[5] e cinco desocupados ou em construção. Destaca-se a existência da Área Especial A da Quadra 6 do SHN, desocupada e equivalente ao Complexo Brasil XXI do SHS. Esse grande lote representa um potencial de centenas de leitos em estoque especulativo.
Verifica-se que há um expressivo número de lotes vazios ou em construção, que representam potencial oferta hoteleira apenas na área central de Brasília. Dentre os hotéis existentes, entretanto, é senso comum que há escassez de leitos de qualidade superior. Tal realidade indica que há um déficit qualitativo na rede hoteleira brasiliense, e não quantitativo, sendo seguro afirmar que a solução para um evento como a Copa do Mundo de 2014 não é aumentar a quantidade de leitos disponíveis, mas sim requalificar os existentes, por meio de políticas de incentivo.
Haveria diversas alternativas para ampliar-se o número de leitos e que não foram consideradas pelo GDF. Em relação aos lotes desocupados do SHN e SHS, poderia ser aplicado o IPTU progressivo ou a desapropriação “motivada por necessidade” ou “a interesse público” onde uma nova licitação cobriria os gastos do governo com as desapropriações e destinaria os lotes a quem realmente se interessasse em implantar empreendimentos hoteleiros.
Outra opção seria o aumento dos gabaritos dos pequenos hotéis de três pavimentos existentes no SHS e SHN, conforme pleito apresentado ao GDF pelos proprietários e atualmente em análise pelo PPCUB. Os impactos advindos da ampliação do gabarito destes hotéis de três pavimentos – a serem mitigados mediante estudos específicos – seriam mínimos diante dos danos causados pela equivocada proposta hoteleira para o SGAN 901.
Também merece ser analisado com seriedade a grande quantidade de leitos do tipo “flat” ou “apart hotel” na área tombada que são ocupados, de fato, como residências. Essa distorção é estimulada pela legislação distrital ao permitir-se que o IPTU comercial das unidades (alíquota de 1% sobre o valor do imóvel) seja reduzido para IPTU residencial (alíquota de 0,30%) por meio de mero formulário preenchido junto à Secretaria de Fazenda do GDF.
Esse desvirtuamento é verificado na quase totalidade dos oito novos empreendimentos hoteleiros de Brasília localizados no SHTN e SCES (orla do Paranoá), os quais foram concebidos, comercializados e ocupados como “residencial com serviços”, ou seja, condomínios fechados de alta renda e com vista para o Lago Paranoá. O mesmo fenômeno começa a se repetir em dois novos empreendimentos em construção no SHN.
O Código de Edificações do DF sofreu alterações visando coibir a ocupação residencial em lotes para hotéis. Contudo diversos dispositivos inseridos têm sido inócuos, como a exigência de que no mínimo 80% das UH – Unidades Habitacionais – dos empreendimentos façam parte de um “pool de hospedagem temporária”. Até o momento tal dispositivo não vem sendo aplicado por desconhecimento de qual mecanismo jurídico pode efetivá-lo. Assim, aprovam-se projetos de arquitetura, emitem-se alvarás de construção e cartas de habite-se sem o cumprimento dessa exigência criada com o objetivo de fazer cumprir o que os parâmetros de uso definiram para os lotes.
Verifica-se assim uma grave contradição institucional quando o GDF defende um projeto hoteleiro para a SGAN 901 alegando déficit de leitos e, simultaneamente, não apresenta medidas efetivas que eliminem a transformação de hotéis em residências em outras regiões da área tombada.
- 4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em síntese, o projeto hoteleiro proposto para a SGAN 901 é ilegal por estar em desacordo com os parâmetros de uso e ocupação constantes na NGB 01/86, cuja aplicação nessa região é garantida pela legislação de proteção do Plano Piloto de Brasília. O PDOT vigente, por sua vez, não invalida a NGB 01/86 e não permite a criação de novas unidades imobiliárias nas áreas centrais ou na SGAN 901. De forma similar, o “Programa de Revitalização dos Setores Centrais de Brasília” não prevê a alteração de gabarito e de usos na SGAN 901 e o PPCUB recomenda a preservação da SGAN em sua configuração atual. Em termos conceituais, o projeto também se mostra danoso por desfigurar a clareza geométrica e a simetria entre os setores centrais norte e sul de Brasília, por alterar o perfil da cidade (skyline) e por deslocar a escala gregária para uma região caracterizada pela escala bucólica.
As justificativas para o projeto são inconsistentes, pois não há estudos conclusivos sobre o suposto déficit de 10 mil leitos de hospedagem para a Copa do Mundo de 2014 e entidades representativas da indústria de hotelaria afirmam que tal déficit não existe. Também se verifica que o projeto hoteleiro para a SGAN 901 foi proposto sem que se esgotassem as diversas alternativas para aumento da oferta de leitos tais como ocupação compulsória de lotes vazios, aumento de gabarito de hotéis econômicos no SHS e SHN, medidas efetivas que impeçam a ocupação residencial de lotes destinados a hotéis ou planos de incentivos para a requalificação da rede hoteleira existente.
Diante de todo o exposto, os arquitetos e urbanistas subscritos posicionam-se CONTRA o projeto hoteleiro apresentado pela Terracap e GDF para a SGAN 901 e requerem, especialmente dos órgãos de defesa do patrimônio histórico, posicionamento claro e objetivo sobre esse projeto ofensivo aos diplomas legais que regulam a preservação e proteção do conjunto arquitetônico, urbanístico e paisagístico do Plano Piloto de Brasília.
Estou convosco.